Se fosse necessário fixar uma data que assinalasse o fim da "era
pós-soviética" na política mundial, esse dia seria 4 de Fevereiro de
2012. O duplo veto da Rússia e da China à resolução proposta pela Liga
Árabe ao Conselho de Segurança da ONU é um evento histórico monumental.
Curiosamente,
o secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, escolheu o próprio
dia do veto para provocar a Rússia. Disse ele que a NATO terá os
primeiros elementos do sistema de mísseis anti-balísticos (ABM) dos EUA
implantados e em actividade na Europa na data da próxima cimeira da
NATO, em Maio, em Chicago, sejam quais forem as objecções de Moscovo.
O
primeiro duplo veto de russos e chineses na questão síria, em reunião
do Conselho de Segurança da ONU em Outubro, foi
movimento coordenado, com o objectivo de fazer gorar uma resolução que
poderia ser aproveitada pela NATO para montar uma operação militar na
Síria. Mas o segundo duplo veto, em movimento para pressionar o
presidente Bashar al-Assad da Síria a deixar o poder, tem significado
muito mais amplo.
A
situação na Síria evoluiu desde Outubro e aparece afinal como disputa
geopolítica pelo futuro do regime iraniano, pelo controle do petróleo do
Oriente Médio e pela perpetuação da influência dominante do ocidente
naquela região. Rússia e China sentem que pode acontecer de serem
despachadas para fora do Oriente Médio.
Com o duplo veto, a
única opção deixada para os EUA e seus aliados na Síria é atropelar a
lei internacional e a Carta da ONU e derrubar o governo sírio. Há também
a opção da intervenção clandestina, mas é possibilidade remota. Segundo
Philip Giraldi, ex-analista da
CIA, em artigo publicado na última edição da revista
Giraldi acrescenta que os próprios analistas da CIA
"duvidam de qualquer possibilidade de guerra", porque sabem que os
números de baixas entre os civis citados e repetidos em relatórios da
ONU são obtidos de fontes rebeldes, sem qualquer confirmação. A CIA
também se "recusou a confirmar notícias sobre deserção em massa de
soldados sírios". E, para a CIA, relatos de combates entre desertores e
soldados leais "parecem não passar de boatos", uma vez que, até agora,
"só se confirmaram pouquíssimas deserções".
Se Washington conhece a
real situação em campo na Síria, Moscovo e Pequim também a conhecem.
Assim, está em curso uma "braço de ferro" na disputa pela Síria. Os EUA,
os seus aliados e a Turquia podem optar por uma escalada nas operações
clandestinas. Mas a Rússia tem meios para fazer com que o 'custo'
militar da guerra clandestina aumente muito. O ministro das Relações
Exteriores da Rússia Sergey
Lavrov disse, em Moscovo, no final de semana, que Moscovo "fará todo o
possível para evitar uma agressão militar armada contra a Síria", mas
que nada poderá fazer "para impedir intervenção militar nos assuntos
sírios, se a decisão de intervir for tomada por qualquer outro país".
Por
outro lado, o ocidente não aceita a Rússia como árbitro na Síria e
tem-se dedicado a frustrar as repetidas tentativas russas de levar as
facções da oposição e o governo sírio à mesa da negociação e do diálogo
políticos. Moscovo sente que a posição política do presidente Bashar
Al-Assad está enfraquecendo; e o ocidente avalia que a posição russa se
vai tornando cada dia menos sustentável.
Quanto à China, o
ocidente decidiu ignorar o veto chinês. Obviamente, o ocidente tende a
não dar importância às ambições do dragão no Oriente Médio; e
concentra-se em resistir furiosamente aos avanços do urso – porque o
urso, muito
mais que o dragão, tem vastíssima experiência acumulada em longa
história de participação nos negócios da região. Assim sendo, a barragem
de propaganda ocidental já está a apresentar a Rússia como obstáculo a
quaisquer reformas ou mudanças democráticas no Oriente Médio. A
embaixadora dos EUA na ONU, Susan Rice, escolheu cuidadosamente as
palavras, para dizer, em tom grandiloquente, que os EUA se sentiam
"desgostosos"
("disgusted") perante o veto russo.
A
Rússia está decidida a não se deixar arrastar para guerras por
procuração, que são sorvedouros de recursos insaciáveis. O Ocidente
sente-se seguro, porque o emir do Qatar pôs sua fabulosa fortuna à
disposição, para financiar as operações. A Rússia não poderá abandonar a
Síria, seu aliado tradicional, exactamente quando esta está sob ataque,
porque esse movimento comprometeria muito gravemente a imagem que a
Rússia tenta construir e preservar no Oriente
Médio, num momento crucial, logo nas primeiras escaramuças de uma nova
disputa geoestratégica – que terá impactos globais de longo prazo. Por
tudo isso, é prioridade absoluta nas estratégias ocidentais já há várias
décadas, impedir que a Rússia – grande consumidora de energia –
construa laços de solidariedade e amizade com as oligarquias do petróleo
e gás do Golfo Persa.
Por via das dúvidas, Lavrov e o chefe da Inteligência Exterior da Rússia Mikhail Fradkov estão hoje em Damasco
[2]
. O ministro russo de Relações Exteriores disse no domingo que "a
Rússia, depois de ouvir vários outros países, está decidida a buscar a
imediata estabilização da situação na Síria, o que será alcançado
mediante a rápida implantação das transformações democráticas há muito
necessárias."
Na declaração, Lavrov sugere que a Liga Árabe
envie missão de
observadores também à Síria, "dado que aquela comissão já se demonstrou
eficaz para promover a desescalada da violência". É evidente o senso de
urgência. Mas não há dúvida de que o ocidente bloqueará os efeitos da
missão de Lavrov.
O facto é que o ocidente não sabe como agir,
porque o seu procurador oficial, Burhan Ghalioun, do chamado Conselho
Nacional Sírio (exilado sírio que vive na França e dá aulas na Sorbonne)
não desperta nenhum entusiasmo entre os sírios e nada garante que possa
retornar à Síria nos próximos tempos. E a guerra civil espalha-se pelo
interior da Síria. Por tudo isso, a situação vai rapidamente ganhando
contornos idênticos aos de outras guerras por procuração típicas da
Guerra-Fria.
O pano de fundo também está carregado de paralelos
muito perturbadores. Não só a Rússia, mas também a China, está sob a
pressão dos EUA, desde o anúncio da "virada estratégica" dos EUA na
direcção da Ásia.
'Preocupações sino-russas' Depois
de os EUA inaugurarem uma base militar na Austrália, Washington
trabalha hoje em contactos com Manilha para aumentar a presença militar
dos EUA no Sudeste da Ásia. Manilha está disposta a receber navios e
aviões de vigilância dos EUA para manobras militares conjuntas e pede o
apoio dos EUA, duas décadas depois de soldados norte-americanos terem
sido expulsos da base de Subic Bay, então a maior base dos EUA no
Pacífico.
Na conferência anual de segurança em Munique, dias 4 e
5 de Fevereiro, Pequim não escondeu seu desagrado. O vice-ministro de
Relações Exteriores Zhang Zhijun conclamou "países fora da Ásia" a
desistir de qualquer tentativa de "deliberadamente expandir suas agendas
militares e de segurança, criar novas tensões ou reforçar a presença
militar ou alianças militares" na região, e a não procurarem "impor seus
desejos à Ásia". Disse
ele: "A via asiática deve ser respeitada". E repetiu o alerta contra
"qualquer tentativa de subverter o direito internacional." Zhang
sublinhou que o crescimento da Ásia "indica um movimento na direcção de
maior equilíbrio na estrutura internacional do poder."
Significativamente, o jornal
The Global Times, de
Pequim, sugeriu há pouco que a beligerante projecção do poder militar
dos EUA vai aos poucos deixando Pequim e Moscovo sem alternativa,
obrigando-as a reagir. Lê-se ali:
Até aqui, Moscovo e Pequim têm-se mantido
relativamente contidas, apesar de a NATO procurar expandir sua presença
estratégica na Europa Oriental, e de os EUA reforçarem suas alianças
militares na Ásia. Mas não poderão permanecer contidas para sempre.
Tanto para Pequim como para Moscovo, os laços com os EUA sempre foram
complexos e tensos. As duas capitais não querem que se gerem suspeitas
sobre o recente 'aquecimento' das relações entre elas. Mas nos dois
países cresce o número de vozes que agora advogam uma aliança
Moscovo-Pequim. Ambas as capitais têm contra-medidas a implantar contra
os EUA, e competências para conter aliados dos EUA. Se realmente
decidirem darem-se as mãos, o equilíbrio do poder em muitas questões
mundiais começará a ser deslocado.
[3]
Do mesmo modo, deterioraram-se os laços entre
Moscovo e o ocidente. As conversações entre EUA e Rússia sobre os
mísseis anti-balísticos estão paralisadas. Washington rejeita a
exigência de Moscovo, para que se criem mecanismos que impeçam os EUA de
usarem os sistemas de mísseis anti-balísticos a serem implantados na
Europa como arma de contenção estratégica contra a Rússia
Dmitry
Rogozin, vice-primeiro-ministro russo, disse recentemente em Moscovo
que os EUA e seus aliados da NATO têm actualmente 1.000 mísseis capazes
de interceptar os mísseis balísticos intercontinentais russos, cobrindo
toda a Rússia europeia até os Urais. Disse ele:
Não há quaisquer garantias de que depois de a
primeira, segunda e terceira fase [do projecto de mísseis
anti-balísticos dos EUA] estarem completadas, não virão fases quarta,
quinta e sexta. Alguém supõe que os EUA paralisarão todas as suas
tecnologias depois de 2020? Não faz sentido! É claro que prosseguirão e
desenvolverão parâmetros técnicos sempre superiores para seus mísseis de
interceptação e para as capacidades e desempenho de seus sistemas de
interceptação [os mísseis de defesa] (...).
O facto de o sistema
de mísseis de defesa ter capacidade para destruir mísseis estratégicos e
o facto de essas bases e frotas estarem estacionadas em mares do Norte
evidenciam o claro carácter anti-russo que se constata em todo o
programa de mísseis de defesa dos EUA.
[4]
Muito claramente, o duplo veto russo e chinês
contra a resolução sobre a Síria é um movimento coordenado para desafiar
os planos de marcha triunfalista dos EUA, da Líbia à Síria e dali ao
Irão. Lavrov reuniu-se com o embaixador chinês no Conselho de Segurança,
Yang Jiechen, pouco antes da votação no Conselho de Segurança. Ao
apresentar seu voto, o embaixador chinês, Li Baodong, afirmou: "A China
apoia a proposta de resolução revista e emendada pela Rússia."
A
Agência Xinhua comentou que o duplo veto "visa a estimular a busca de
solução pacífica" na Síria e "a evitar possíveis soluções drásticas e
arriscadas." Explicou detalhadamente "as preocupações sino-russas" sobre
a Síria. Os comentaristas chineses destacaram que "a globalização impôs
uma nova lógica nas relações internacionais" e a Síria é teatro chave
na agenda ocidental, para fazer do Oriente Médio esfera de influência do
ocidente.
07/Fevereiro/2012
[1] 19/12/2011, em http://www.theamericanconservative.com/blog/nato-vs-syria/
[2] Acerca da visita de Lavrov a Damasco, em 7/2/2012, ver http://rt.com/news/syria-lavrov-talks-damascus-657/
[3] 20/1/2012, em www.globaltimes.cn/...
[4] 20/1/2012, em www.nation.com.pk/... [*] Antigo
embaixador da Índia em Moscovo.
O original encontra-se em http://www.atimes.com/atimes/china/nb07ad01.html Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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