12/Julho/2012
— 26 notas para compreender a batalha actual
por Samuel Pinheiro Guimarães
[*]

1. Não há como entender as peripécias da política
sul-americana sem levar em conta a política dos Estados Unidos para a
América do Sul. Os Estados Unidos ainda são o principal ator
político na América do Sul e pela descrição de seus
objetivos devemos começar.
2. Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados
Unidos, que apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior
potência política, militar, econômica e cultural do mundo,
é incorporar todos os países da região à sua
economia. Esta incorporação econômica leva,
necessariamente, a um alinhamento político dos países mais fracos
com os Estados Unidos nas negociações e nas crises internacionais.
3. O instrumento tático norte-americano para atingir este objetivo
consiste em promover a adoção legal pelos países da
América do Sul de normas de liberalização a mais ampla do
comércio, das finanças e investimentos, dos serviços e de
"proteção" à propriedade intelectual
através da negociação de acordos em nível regional
e bilateral.
4. Este é um objetivo estratégico histórico e permanente.
Uma de suas primeiras manifestações ocorreu em 1889 na I
Conferência Internacional Americana, que se realizou em Washington,
quando os EUA, já então a primeira potência industrial do
mundo, propuseram a negociação de um acordo de livre
comércio nas Américas e a adoção, por todos os
países da região, de uma mesma moeda, o dólar.
5. Outros momentos desta estratégia foram o acordo de livre
comércio EUA-Canadá; o NAFTA (Área de Livre
Comércio da América do Norte, incluindo além do
Canadá, o México); a proposta de criação de uma
Área de Livre Comércio das Américas – ALCA e,
finalmente, os acordos bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os
países da América Central.
6. Neste contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano
é incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais
economias industriais da América do Sul, a este grande
"conjunto" de áreas de livre comércio bilaterais, onde
as regras relativas ao movimento de capitais, aos investimentos estrangeiros,
aos serviços, às compras governamentais, à propriedade
intelectual, à defesa comercial, às relações entre
investidores estrangeiros e Estados seriam não somente as mesmas como
permitiriam a plena liberdade de ação para as megaempresas
multinacionais e reduziria ao mínimo a capacidade dos Estados nacionais
para promover o desenvolvimento, ainda que capitalista, de suas sociedades e de
proteger e desenvolver suas empresas (e capitais nacionais) e sua força
de trabalho.
7. A existência do Mercosul, cuja premissa é a preferência
em seus mercados às empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos
territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em
relação às empresas que se encontram fora desse
território e que procura se expandir na tentativa de construir uma
área econômica comum, é incompatível com objetivo
norte-americano de liberalização geral do comércio de
bens, de serviços, de capitais etc que beneficia as suas megaempresas,
naturalmente muitíssimo mais poderosas do que as empresas sul-americanas.
8. De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os
Estados Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia,
pois importam 11 milhões de barris diários de petróleo
sendo que 20% provêm do Golfo Pérsico, área de
extraordinária instabilidade, turbulência e conflito.
9. As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do
setor petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um
lado, a Venezuela tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos
e, de outro lado, importava os equipamentos para a indústria de
petróleo e os bens de consumo para sua população,
inclusive alimentos.
10. Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas
decisões de reorientar a política externa (econômica e
política) da Venezuela em direção à América
do Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim como de
construir a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e
industrial do país viriam a romper a profunda dependência da
Venezuela em relação aos Estados Unidos.
11. Esta decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo
estratégico da política exterior americana de garantir o acesso a
fontes de energia, próximas e seguras, se tornou ainda mais importante
no momento em que a Venezuela passou a ser o maior país do mundo em
reservas de petróleo e em que a situação do Oriente
Próximo é cada vez mais volátil.
12. Desde então desencadeou-se uma campanha mundial e regional de
mídia contra o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando
demonizá-lo e caracterizá-lo como ditador, autoritário,
inimigo da liberdade de imprensa, populista, demagogo etc. A Venezuela, segundo
a mídia, não seria uma democracia e para isto criaram uma
"teoria" segundo a qual ainda que um presidente tenha sido eleito
democraticamente, ele, ao não "governar democraticamente",
seria um ditador e, portanto, poderia ser derrubado. Aliás, o golpe
já havia sido tentado em 2002 e os primeiros lideres a reconhecer o
"governo" que emergiu desse golpe na Venezuela foram George Walker
Bush e José María Aznar.
13. À medida que o Presidente Chávez começou a
diversificar suas exportações de petróleo, notadamente
para a China, substituiu a Rússia no suprimento energético de
Cuba e passou a apoiar governos progressistas eleitos democraticamente, como os
da Bolívia e do Equador, empenhados em enfrentar as oligarquias da
riqueza e do poder, os ataques redobraram orquestrados em toda a mídia
da região (e do mundo).
14. Isto apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade
democrática do Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze
eleições, que foram todas consideradas livres e legítimas
por observadores internacionais, inclusive o Centro Carter, a ONU e a OEA.
15. Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura ao
Mercosul. Em 2006, após o término das negociações
técnicas, o Protocolo de adesão da Venezuela foi assinado pelos
Presidentes Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré e Nicanor Duarte, do
Paraguai, membro do Partido Colorado. Começou então o processo de
aprovação do ingresso da Venezuela pelos Congressos dos quatro
países, sob cerrada campanha da imprensa conservadora, agora preocupada
com o "futuro" do Mercosul que, sob a influência de
Chávez, poderia, segundo ela, "prejudicar" as
negociações internacionais do bloco etc. Aquela mesma imprensa
que rotineiramente criticava o Mercosul e que advogava a
celebração de acordos de livre comércio com os Estados
Unidos, com a União Européia etc, se possível até
de forma bilateral, e que considerava a existência do Mercosul um entrave
à plena inserção dos países do bloco na economia
mundial, passou a se preocupar com a "sobrevivência" do bloco.
16. Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da
Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação
do Senado paraguaio, dominado pelos partidos conservadores representantes das
oligarquias rurais e do "comércio informal", que passou a
exercer um poder de veto, influenciado em parte pela sua oposição
permanente ao Presidente Fernando Lugo, contra quem tentou 23 processos de
"impeachment" desde a sua posse em 2008.
17. O ingresso da Venezuela no Mercosul teria quatro consequências:
dificultar a "remoção" do Presidente Chávez
através de um golpe de Estado; impedir a eventual
reincorporação da Venezuela e de seu enorme potencial
econômico e energético à economia americana; fortalecer o
Mercosul e torná-lo ainda mais atraente à adesão dos
demais países da América do Sul; dificultar o projeto americano
permanente de criação de uma área de livre comércio
na América Latina, agora pela eventual "fusão" dos
acordos bilaterais de comércio, de que o acordo da Aliança do
Pacifico é um exemplo.
18. Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da Venezuela no
Mercosul tornou-se questão estratégica fundamental para a
política norte americana na América do Sul.
19. Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder
no Paraguai durante sessenta anos, até a eleição de Lugo,
e os do Partido Liberal, que participava do governo Lugo, certamente avaliaram
que as sanções contra o Paraguai em decorrência do
impedimento de Lugo, seriam principalmente políticas, e não
econômicas, limitando-se a não poder o Paraguai participar de
reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco.
Feita esta avaliação, desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido
Liberal deixou o governo e aliou-se aos Colorados e à União
Nacional dos Cidadãos Éticos – UNACE e aprovaram, a toque de
caixa, em uma sessão, uma resolução que consagrou um rito
super-sumário de "impeachment".
Assim, ignoraram o Artigo 17 da Constituição paraguaia que
determina que "no processo penal, ou em qualquer outro do qual possa
derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a dispor das
cópias, meios e prazos indispensáveis para
apresentação de sua defesa, e a poder oferecer, praticar,
controlar e impugnar provas", e o artigo 16 que afirma que o direito de
defesa das pessoas é inviolável.
20. Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que
não foi aprovado, levou cerca de três meses enquanto o processo
contra Fernando Lugo foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de
revisão de constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto
à Corte Suprema de Justiça do Paraguai sequer foi examinado,
tendo sido rejeitado
in limine.
21. O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi considerado golpe
por todos os Estados da América do Sul e de acordo com o Compromisso
Democrático do Mercosul o Paraguai foi suspenso da Unasur e do Mercosul,
sem que os neogolpistas manifestassem qualquer consideração pelas
gestões dos Chanceleres da UNASUR, que receberam, aliás, com
arrogância.
22. Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e
legal para os governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o
ingresso da Venezuela no Mercosul a partir de 31 de julho próximo.
Acontecimento que nem os neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos
– EUA, Espanha, Vaticano, Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo
ilegal de Franco – parecem ter previsto.
23. Diante desta evolução inesperada, toda a imprensa
conservadora dos três países, e a do Paraguai, e os líderes
e partidos conservadores da região, partiram em socorro dos neogolpistas
com toda sorte de argumentos, proclamando a ilegalidade da suspensão do
Paraguai (e, portanto, afirmando a legalidade do golpe) e a inclusão da
Venezuela, já que a suspensão do Paraguai teria sido ilegal.
24. Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do Tribunal Permanente
de Revisão do Mercosul sobre a legalidade de sua suspensão do
Mercosul enquanto, no Brasil, o líder do PSDB anuncia que
recorrerá à justiça brasileira sobre a legalidade da
suspensão do Paraguai e do ingresso da Venezuela.
25. A política externa norte-americana na América do Sul sofreu
as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas
paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam
aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as
eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer
reverter a decisão de ingresso da Venezuela.
26. Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da
Venezuela, da disputa por influência econômica e política na
América do Sul e de seu futuro como região soberana e
desenvolvida.
12/Julho/2012
Do mesmo autor em resistir.info:
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