Por Nildo Ouriques.
Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais e membro do IELA-UFSC
04.10.2011
- O primeiro livro sobre Cuba que eu li foi A Ilha, de Fernando Morais,
no final da década de setenta. Em perspectiva, aquele livrinho – que na
época cumpriu extraordinário papel educativo – hoje seria
desnecessário. O acesso a internet, a possibilidade de viajar
diretamente a Havana, a presença de intelectuais e dirigentes políticos
cubanos em eventos no Brasil, permite conhecimento mais preciso sobre um
país que durante nossa longa ditadura – 21 anos – seria impossível. A
Ilha, na verdade, uma espécie de livro-reportagem, introduzia o leitor
no conhecimento das reformas iniciadas pela Revolução Cubana, este
fenômeno histórico que é um verdadeiro divisor de águas na política e na
consciência mundial e latino-americana.
Atualmente, a “imprensa livre” segue em uníssono a campanha contra o
sistema político cubano sem mudar um átomo daquele enfoque típico do
período chamado de “guerra fria”. Exceto pelo fato de que qualquer
pessoa pode ler na edição dominical do Estadão os textos de Yaomy
Sánchez, a “dissidente” que publica artigos com todo tipo de críticas ao
sistema político cubano (falsas e/ou verdadeiras), um verdadeiro luxo
que nenhum proscrito pela ditadura brasileira jamais teve.
Nestes dias, li de “um tirón” o novo livro de Fernando Morais. À exemplo
de A Ilha, do qual minha memória guarda apenas uma cálida recordação,
“Os últimos soldados da guerra fria. A história dos agentes secretos
infiltrados por Cuba em organizações de extrema direita nos Estados
Unidos” é também um livro reportagem, embora de muito maior fôlego,
repleto de informação – e pesquisa – acesso privilegiado a documentos de
Estado, pitadas de novela, estilo direto e agradável. E mais
importante, é também um livro de análise das relações internacionais
(sobre o poder dos estados nacionais), sobre o terrorismo de estado e as
formas de combatê-lo.
Como de costume, “Os últimos soldados da guerra fria” foi recebido pela
crítica brasileira com ceticismo e desaprovação. O jornal Folha de São
Paulo sugeriu que se tratava de um livro débil e indicou como prova
cabal duas ou três informações errôneas, como se fosse possível realizar
um trabalho relativamente longo e importante de pesquisa sem erros. Eu
mesmo encontrei que Luis Miguel, o cantor de boleros mexicanos nasceu,
segundo Morais, em Porto Rico. Apesar de errônea, qual a importância
desta informação para o argumento central da trama? Há, em quase todos
os livros sobre América Latina, grandes e pequenos erros, especialmente
quando se trata de relatos que envolvem muitos personagens e longos
períodos históricos. Recordo a respeito que “A utopia desarmada”, de
Jorge Catañeda, foi um livro aclamado com enorme entusiasmo pelo
jornalismo nacional e contém – este sim! – graves erros históricos e não
poucas falsificações que comprometem derradeiramente seu argumento
central. O livro não poderia ser mais desastroso e a crítica recebeu
bastante bem, mas obviamente fazia parte da campanha mundial contra o
radicalismo de esquerda na América Latina.
De minha parte, creio que Fernando Morais, vacilou na questão central.
Seu precioso relato sobre os agentes cubanos infiltrados nas
organizações terroristas – ele as denomina de “extrema direita” – que se
proliferam em Miami é, de fato, um capítulo heróico de pessoas
dispostas a arriscar a própria vida na defesa de seu povo. É também uma
demonstração inequívoca de que os cubanos sempre atuaram de maneira
inflexível contra qualquer ato terrorista e não mediram esforços para
combatê-lo mesmo em território estadunidense. Contudo, ainda com a
abundância de provas e o conhecimento que qualquer latino-americano
medianamente informado possui sobre a importância de Miami para a
chamada “comunidade latina” nos Estados Unidos – e sua infinita
cumplicidade para receber não somente terroristas, mas também os piores
ditadores do continente como “exilados” – Fernando Morais não concluiu
com uma obviedade: ao contrário da propaganda que indica os Estados
Unidos como vítima do terrorismo, a potência imperialista é, na verdade,
o maior patrocinador do terrorismo de estado, muitas vezes mais letal e
poderoso que as chamadas “organizações terroristas” que eles se
empenham, algumas vezes, em combater.
Neste contexto, os agentes secretos infiltrados pela inteligência cubana
nas organizações terroristas que se proliferaram na década de sessenta e
seguem operando nos Estados Unidos, especialmente em Miami, não
representa como de certa forma pretende Fernando Morais, o epílogo da
“guerra fria”, mas lamentavelmente, mais um capítulo da ofensiva
estadunidense pela destruição da independência e soberania de Cuba. De
fato, predominou durante muito tempo na análise das relações
internacionais o “paradigma” da Guerra Fria que, em muitos casos,
ocultava em grande medida temas mais importantes e duradouros como a
dependência e, especialmente, o colonialismo. Ora, é fácil perceber que
mesmo tendo desaparecido o mundo criado pela chamada “Guerra Fria”, a
ofensiva estadunidense contra Cuba permanece mais forte do que nunca
antes. Caso fosse um capítulo a mais naquela trama, por que a ofensiva
contra Cuba ainda não desapareceu se a URSS sucumbiu? Ademais, exceto
durante a conhecida “crise dos mísseis”, jamais a Revolução Cubana
representou uma ameaça militar para os Estados Unidos. Cuba nunca foi,
de fato, nem mesmo na cabeça do mais fanático anticomunista, uma ameaça à
segurança da potência imperialista. Portanto, ao inscrever a ofensiva
permanente dos Estados Unidos contra Cuba no contexto da chamada “Guerra
Fria”, Fernando Morais permite, ainda que involuntariamente, o reforço
do enfoque liberal dominante no Brasil sobre as relações entre os
Estados Unidos e os países latino-americanos. Segundo este enfoque, os
Estados Unidos aparecem como defensores da “democracia e dos mercados” e
o regime cubano não passa de um anacronismo de um período que não mais
existe, razão pela qual precisa se reformar na direção indicada por
Washington.
A reflexão crítica sobre o terrorismo de estado jamais foi admitida como
programa para as ciências sociais no Brasil. Com o fim da ditadura na
metade da década de oitenta, os liberais impuseram o tema da democracia e
os críticos – socialistas ou não – aceitaram a pauta sem reparos.
Portanto, a tematização do terrorismo de estado parecia obsoleta, sendo
também extinta na análise das relações internacionais. Contudo,
importantes cientistas sociais em outros países latino-americanos
seguiram estudando o terrorismo de estado – caso da Colômbia,
especialmente – e também dos Estados Unidos.
Caso os Estados Unidos estivessem realmente interessados no efetivo
combate a toda e qualquer modalidade de terrorismo, deveriam condecorar
os agentes cubanos, mas, ao contrário, cinco foram condenados a longas
penas e, dois deles, Gerardo Hernández Nordelo e Ramón Labañino, à
prisão perpétua. No momento em que escrevo esta crônica, René González,
que no dia 7 de outubro será liberado após permanecer 13 anos na cadeia,
pensava em regressar imediatamente para Cuba.
Contudo, sua defesa acaba de ser comunicado pela juíza encarregada do
caso que ele deverá permanecer mais três anos nos Estados Unidos em
“liberdade supervisionada”, decisão que constitui uma penalidade
adicional não prevista e rigorosamente ilegal. A análise deste juízo
oferece pistas importantes sobre o colapso do sistema jurídico
estadunidense, especialmente golpeado durante os dois mandatos de George
Bush. É uma pena que Morais não nos forneceu mais informação sobre as
aberrações jurídicas que orientaram este “julgamento” e que, por isso
mesmo, revelam o que sobrou do sistema jurídico após a ofensiva
republicana contra os tribunais nos EUA. Este mesmo sistema de justiça
continua em frangalhos e, em aspectos decisivos, é bastante clara a
completa submissão da justiça à razão de estado como se viu no
“julgamento” realizado nas cortes de Miami.
Lamentavelmente não há indícios de que Barak Obama esteja dando passos
firmes em sua reconstrução. Como admitir, por exemplo, que uma figura
como Posada Carriles, terrorista confesso, goze de tanta proteção e
liberdade dentro dos Estados Unidos? Como admitir a transmissão da Rádio
e TV Martí, criada no governo de Ronald Reagan, em completa violação da
legislação estadunidense e que, não obstante, funciona plenamente a
partir do ridículo mecanismo de balões dirigíveis na Florida, permitida
pelo Departamento de Estado?
Eu tenho clareza que o estudo sobre o terrorismo de estado não constitui
uma hipótese aceitável para a bem comportada ciência social
universitária. Como nós sabemos, no Brasil a categoria “imperialismo”
deixou de ser utilizada na análise das relações internacionais. Ainda
assim, do impecável jornalismo de Robert Fisk às sólidas interpretações
de Noam Chomsky, o tema do terrorismo de estado é central para todo
aquele interessado na política externa estadunidense e a relação
imperialista que mantém com o continente latino-americano. Em nosso
país, a linha editorial dominante – assumida como ordem unida para todo
aquele que pretende freqüentar a grande mídia – eliminou sem
constrangimento algum os estudos sobre o terrorismo de estado e, em
conseqüência, foca quase que exclusivamente, como recomenda a razão de
estado, somente o terrorismo de organizações políticas.
Ninguém pode desconhecer a capacidade de destruição de uma organização
como a Al Qaeda, obviamente. Mas poderemos ignorar que a capacidade de
destruição de um Estado é muitas vezes superior ao de qualquer
organização terrorista? Acaso podemos ignorar que os Estados Unidos
praticam em larga escala o terrorismo de estado?
Talvez Fernando Morais tenha preferido deixar para o leitor concluir
que, ao permitir a livre atuação de organizações de “extrema direita” em
território estadunidense, a potência imperialista – especialmente em
Miami – não pode ser considerada senão como santuário de terroristas.
Morais revela com abundância de informação como as organizações situadas
em Miami e composta majoritariamente por cubanos exilados, violam
sistematicamente as leis estadunidenses e a soberania cubana com ações
terroristas contra Cuba de maneira desinibida e com tácita permissão das
autoridades políticas, dos órgãos de segurança e do mundo partidário
estadunidense (republicanos e/ou democratas).
De qualquer forma, minha crítica não ignora a notável contribuição que
uma vez mais Fernando Morais oferece aos brasileiros para entender algo
sobre a realidade latino-americana. A ignorância nacional sobre a
realidade cubana é parte integrante de nossa ignorância sobre temas,
dramas e desafios que também são nossos. Além das críticas rasteiras,
estou seguro que conspirará contra o livro de Fernando Morais o
silêncio, esta eficaz arma da classe dominante brasileira e de nossa
intelectualidade educada contra qualquer tentativa de
latino-americanização de nossa nacionalidade.
A imprensa brasileira – que dúvida pode existir! – desqualificará este
importante livro por duas vias conhecidas. A primeira é desmerecê-lo,
como alimento para a ignorância brasileira sobre a Revolução Cubana e
sua luta contra qualquer modalidade de terrorismo, especialmente o
terrorismo estatal estadunidense. A segunda, provavelmente mais eficaz, é
a produção de um silencio sobre o livro como se ele jamais tivesse
existido. Não seria, certamente, a primeira vez que esta política é
colocada em prática. O silêncio também conspirou contra o livro de
Florestan Fernandes sobre a Revolução Cubana. Vânia Bambirra também
escreveu um luminoso livro que sequer possui tradução em português,
embora tenha sido editado em vários países da região e em Portugal.
Enfim, o desprezo do “mundo culto” brasileiro pela política cubana
revela não somente um reacionarismo deplorável, mas, sobretudo, uma
ignorância desmedida.
É claro que a luta de Cuba por manter-se soberana e independente é um
péssimo exemplo para a elite brasileira, pois esta se especializou em
vender o país no mercado mundial com a mesma serenidade com que manda
seus filhos adolescentes à Disneylândia. Portanto, a saga de um país
pequeno que se revela gigante nas relações internacionais, capaz de
desafiar o poder imperialista e indicar ao mundo que é tão necessário
quanto possível atuar no conflito das nações com política própria,
zelando pela soberania e autodeterminação, não poderia senão receber
como resposta o silêncio da elite brasileira. Em poucas palavras: a luta
cubana não existe, simplesmente.
Minha esperança é que a leitura de Os últimos soldados da guerra fria
desperte em milhares de brasileiros o desejo de buscar de maneira
permanente mais informação sobre o destino de cinco homens cubanos de
especial grandeza. Nós poderemos perceber – o relato de Fernando Morais
deixa muito claro este ponto – que precisamente gente aparentemente
comum pode atuar de maneira íntegra e decidida mesmo no piores momentos
de suas vidas pessoais e em circunstancias bastante adversas. Não dever
ser fácil para qualquer pessoa – como não foi para nenhum dos cinco
agentes cubanos – manter-se firme diante das piores situações e
renunciar – uma vez descobertos e presos nos Estados Unidos – a qualquer
acordo com as autoridades estadunidenses. Alguns agentes sucumbiram –
reconheceram que pertenciam a Rede Vespa e que, portanto, eram
efetivamente espiões – entraram nos “programas de delação premiada e de
proteção a testemunhas” e permanecem até hoje livres nos Estados Unidos.
Outros cinco, a fim de manter firme suas convicções mesmo conscientes
que poderiam, por razoes de estado, terminar seus dias numa prisão,
longe de suas mulheres, filhos, pais e, também, longe de sua cultura e
de seu país, negaram nos tribunais qualquer vínculo com espionagem. Deve
parecer muito difícil para um brasileiro médio, doutrinado na adesão
anedótica da defesa da pátria, compreender as razoes que levam pessoas
com vidas muito semelhantes as nossas, a tomar tão decidida opção. No
mundo atual parece ser que não existe mais motivo para este tipo de
comportamento e tudo que restaria a qualquer pessoa racional que se
importa com política seria, portanto, o elogio da cautela e a condenação
de qualquer heroísmo, mesmo quando este não represente, na verdade,
mais que a defesa de nossas próprias convicções.
O estado cubano – e os cubanos de maneira geral – destinam aos agentes
infiltrados nas organizações terroristas de Miami o tratamento de
“heróis”. Não creio tratar-se de exagero. A trama política reconstruída
pelas qualidades literárias de Fernando Morais revela o quanto é difícil
para um homem cubano simples, a nobre tarefa de defender seu povo dos
ataques que todos os dias, durante os últimos 40 anos, são planejados e
executados pelos terroristas confortavelmente instalados em Miami,
chamados orwelianamente de “exílio cubano” pela imprensa estadunidense.
Neste caso, os heróis cubanos são homens que possuem uma vida austera,
amam, choram, sofrem e se divertem, virtudes, que como recorda Morais,
estão bem distantes do colonialismo hollywoodiano plantado em nossa
cultura pelo glamour do “agente 007”, cuja função política e estética é a
eliminação do sacrifício por uma causa política.
O caso dos “cinco heróis” que Cuba reclama imediata e justa liberdade é
uma luta que não terminou. Na verdade, somente poderá ter fim quando
desaparecer a política estadunidense contra a autodeterminação e
soberania cubana. Neste contexto, enganam-se aqueles que comodamente
supõem que esta luta é exclusivamente daqueles que optaram por este
caminho. Aquele heroísmo e aquele drama – ambos – dizem respeito a todos
nós.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário