Por Mauro Iasi.
Entre os dias 02 e 04 de setembro aconteceu em Porto Alegre um encontro
que sobre muitos aspectos é uma grata novidade no movimento estudantil: o I
Seminário Nacional de Universidade Popular (SENUP). Primeiro uma novidade
porque em momentos como os nossos de fragmentação ele se construiu como um
espaço unitário e, segundo, porque começa a superar a mera agenda reativa e
toma uma direção ativa na construção de uma proposta para a Universidade no
Brasil.
Os modelos universitários sempre guardam relação profunda com as formas
societárias que lhes abrigam e refletem a luta entre interesses e perspectivas
das classes em disputa em cada momento histórico. Foi assim na experiência
Inglesa nos séculos XVII e XVIII , quando se tentou inserir novos conteúdos,
adequados aos interesses burgueses em formação, mantendo-se a velha forma da
Universidade medieval baseada no conhecimento como revelação e domínio de
poucos iluminados. No século XIX, principalmente na França de Napoleão,
exige-se do conhecimento e da Universidade que forme os profissionais do
Estado, que desempenhe uma função prática e útil ao desenvolvimento do
capitalismo, como se expressa na briga entre Napoleão e o Institut de France
de Destutt de Tracy e seus ideólogos, fazendo com que a Universidade se
fragmentasse em faculdades específicas formando profissões especializadas na
lógica positivista.
Na Alemanha, em 1810, através das reformas de Humboldt, a questão era
outra. A Alemanha, ainda parte do Império Prussiano, não realizara nem sua
revolução industrial, nem a revolução política típicas da ordem burguesa e
exigia do Estado o papel de indutor desta mudança, tal como ocorreria depois,
entre 1870 e 1871, com Bismarck. Neste cenário a Universidade deveria fornecer
as bases para o desenvolvimento de um pensamento próprio que fundamentasse a
pesquisa e servisse de cimento de uma unidade nacional e formação.
É, no entanto, no século XX e em nossa América Latina que um elemento da
moderna concepção de Universidade emerge. Além de sede do conhecimento
acumulado, da formação dos profissionais e lócus da pesquisa, a
Universidade seria chamada a olhar para a sociedade real e suas demandas,
dialogar com o conhecimento produzido fora dela e enfrentar as lutas sociais
que exigiam que rompesse seu casulo. Um dos momentos decisivos deste processo
se dá na Argentina em 1918, na esteira de acontecimentos como a Revolução
Mexicana e a Revolução Russa. Protagonizada por uma revolta estudantil na
cidade de Córdoba a Universidade foi sacudida pela exigência de democratização,
eficácia e um papel mais atuante na sociedade.
O movimento de Córdoba trazia algumas características próprias deste
período que se abria e que se expressaria novamente com vigor nas revoltas
estudantis francesas de 1968, ou seja, a ligação dos estudantes com as lutas
sociais mais amplas e o movimento operário, assim como o papel de novas camadas
médias em expansão (idem, ibidem).
O resultado desse movimento foi o desenvolvimento daquilo que se
chamaria de educação continuada e depois de extensão universitária, iniciativa
fundada no desejo de levar àqueles que estão fora da universidade parte do
conhecimento ali desenvolvido denunciando o elitismo inerente na forma
universitária que se consolidara na América Latina.
Como vemos, o modelo que herdamos não é simplesmente um entre estes
descritos (universidade como sede do saber acumulado, formação profissional,
pesquisa e extensão), mas uma síntese, nem sempre harmônica dos elementos que
constituíram sua história. Como diria Hegel, que, aliás, foi reitor na
Universidade de Berlim a partir de 1830 até sua morte um ano depois, a verdade
está no todo, mas o todo nada mais é que o processo de sua identificação, antes
de tudo, resultado.
O que queremos então: uma universidade pública, com acesso universal,
democrática em sua gestão, que articule ensino, pesquisa e extensão e responda
às reais demandas da sociedade? Existe um provérbio chinês que nos aconselha a
ter cuidado com o que desejamos porque pode se realizar. A boa notícia para aqueles
que têm propostas rebaixadas é que já temos esta universidade, a má notícia é
que esta universidade com todos os problemas que enfrentamos é pautada por
estes parâmetros.
O que os estudantes reunidos em Porto Alegre descobriram pela sua
experiência própria é algo da maior relevância. A universidade que temos, seus
limites e contradições, não são apenas limites e problemas de um modelo
universitário – o que implicaria na proposição de saídas técnicas,
administrativas e pedagógicas que nos levassem na direção de outro modelo –
mas, expressão dos limites da emancipação política própria da ordem burguesa,
ou seja, é o máximo de emancipação que podemos chegar “dentro da ordem mundana
até agora existente”.
A universidade é publica, ou seja, de todos e, portanto, tem que haver
uma disputa entre os indivíduos para ocupar suas vagas e só os mais capazes é
que lá chegam levando a meritocracia e o vestibular como forma natural de
acesso; é mais ou menos democrática em sua gestão (ainda não se superou
totalmente os entraves e entulhos da Ditadura como as malditas listas tríplices
na eleição de reitor e uma paridade duvidosa na representação dos segmentos da
comunidade universitária); articulasse as dimensões do ensino, da pesquisa e da
extensão, inclusive por força constitucional (artigo 207 da CF) e, o que pode
parecer um paradoxo, responde às reais demandas da sociedade, uma vez que
estamos na sociedade do capital e as suas personificações são organizadas e
presentes fazendo com que seus interesses se expressem como hegemônicos.
O que os estudantes perceberam corretamente é que uma Universidade
Popular não pode ser a universidade que temos “democratizada”, com mais acesso
dos trabalhadores e com trabalho de extensão. Todos estes aspectos não são
contraditórios com o papel da Universidade que temos como um aparelho privado
de hegemonia da burguesia, pelo contrário, é a forma pela qual tal aparelho se
legitima. A burguesia tem uma especificidade histórica, mais do que seus
antecessores ela precisa apresentar seus interesses particulares como se fossem
universais.
A Universidade que temos e o momento pelo qual passa é a expressão do
limite da emancipação política. Ela tem ampliado o acesso, tem aumentado o
número de instituições públicas, tem formado mais profissionais, feito mais
pesquisas, desenvolvido tecnologia e ciência e, nos marcos do desmonte do
Estado, tem feito isso com eficácia, isto é, com as parcas verbas do fundo
público que, por insuficiente, tem que ser completado pelos mecanismos
privatistas (diretos ou indiretos) das Fundações, Instituições de Fomento ou de
financiamento direto das empresas privadas e algumas ditas públicas.
A universidade a serviço da “sociedade”, isto é, do mercado, a
universidade como meio individual de mobilidade social, formando a força de trabalho
através de cursos cada vez mais técnicos e profissionalizantes, ao mesmo em que
tempo isola em ilhas de excelência a formação de pensadores e pesquisadores de
elite cada vez mais restrita e renovada.
Para aplacar as consciências: a extensão. Sempre valorizada no discurso
para ser menosprezada na prática. Considerada como prática menor e não
científica, como caridade assistencial, como oferecimento de sobras
simplificadas do conhecimento. Os pobres podem entrar na Universidade,
garante-se o acesso, mas não a permanência, terão que disputar como indivíduos
uma vaga, uma bolsa, um lugar no alojamento, e serão tratados como um corpo
estranho a ser expelido do copo saudável do templo do conhecimento e do mérito.
Para os poucos que vencem os desafios, devem se tornar como eles, abandonar sua
identidade e sua consciência de classe, pedir acesso à classe média
intelectualizada sem nunca ser de fato aceito, um escravo na casa grande, um
bibelô pitoresco para ser exibido como prova de nossa sociedade democrática e
inclusiva em que cada um, por seus próprios méritos pode subir na vida e ter
uma oportunidade de pisar nos que ficaram em baixo.
Bom, se a Universidade como aparelho privado de hegemonia, local de
reprodução do saber, da formação profissional e da ideologia dominantes, é um
instrumento da hegemonia burguesa, qual o papel de um movimento por uma
Universidade Popular? Não pode ser a pretensão de que se altere este caráter no
âmbito universitário sem que se alterem seus fundamentos, ou seja, as relações
sociais de produção e as formas de propriedade próprias da ordem do capital.
Neste sentido, o movimento por uma Universidade Popular é um movimento
contra-hegemônico.
Não podemos impedir que a burguesia e seus aliados expressem seus
interesses no fazer diário da Universidade, mas temos o dever de apresentar ali
os interesses dos trabalhadores. Devemos afirmar, parodiando Brecht, que ali
onde a burguesia fale, os trabalhadores falarão, ali onde os exploradores
afirmem seus interesses, os explorados gritarão seus direitos, ali onde os
dominadores tentarem mascarar sua dominação sob o véu ideológico da
universalidade, os dominados mostrarão as marcas e cicatrizes de sua
exploração.
Na prática isso significa uma defesa intransigente do caráter público da
universidade contra suas deformações mercantilizantes e privatistas em curso;
não uma convivência formal entre ensino, pesquisa e extensão, mas sua efetiva
integração; a recusa em aceitar uma formação profissional rebaixada convivendo
com as ilhas de excelência, mas tomar de assalto o templo do saber e dotar de
toda a complexidade e riqueza do conhecimento como condição de execução das
diferentes frentes de ação profissional; romper os muros universitários não
para levar conhecimento aos “menos favorecidos”, mas para constituir uma
unidade real com a classe trabalhadora e suas reais demandas como o sangue vivo
das necessidades que deve correr nas veias da busca pelo conhecimento que
garanta a reprodução da vida e não a boa saúde da acumulação do capital.
Por tudo isso, a universidade que queremos construir é mais que pública
(precisa ser radicalmente pública, mas é insuficiente), é popular, com toda a
imprecisão que o termo traz e que precisamos polir até chegar à construção
contra-hegemonica que contraponha os interesses da burguesia com a sólida
afirmação da independência e autonomia dos interesses dos trabalhadores. Por
isso, por sua intencionalidade e sua direção, a luta por uma Universidade
Popular é uma luta anticapitalista e socialista, ou seja, ao se defrontar com
os limites da emancipação política burguesa apresenta a necessidade da
emancipação humana.
Quando recebia o título de Professor Honoris Causa em uma
universidade de Cuba depois da revolução de 1959, Ernesto Che Guevara alertava
em seu discurso de agradecimento lembrando os presentes que o estudo e o
conhecimento não são patrimônio de ninguém, pertencem ao povo e ao povo o darão
ou o povo o tomará e concluiu dizendo: há que se pintar a universidade de
negro, de mulato, de operário e camponês, há que se descer até o povo e vibrar
como ele, sentindo suas verdadeiras necessidades.
Os meninos e meninas, quase quinhentos participantes, que lotaram o
auditório da tradicional faculdade de Direito da UFRGS, representando trinta e
três universidades de quase todos os estados brasileiros, estavam vibrando, em
sintonia com os trabalhadores e suas reais necessidades, se movimentarão e seu
grito será ouvido: é hora de ousar, é hora de lutar, é hora de criar uma
Universidade Popular.
* O I SENUP é uma iniciativa de vários estudantes e suas
organizações (entre elas a FEAB – Federação dos Estudantes de Agronomia do
Brasil – e a ENESSO – Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social
- organizações estudantis (Juventude Comunista Avançando, Juventude
Liberdade e Revolução, União da Juventude Comunista, etc.), núcleos de luta por
uma universidade popular (CTUP, MUP, etc) e organizações políticas como o PCB,
a CCLCP e a Refundação Comunista que se encontram desde 2010 com a intenção de
criar um movimento nacional por uma Universidade Popular.
Sugestões de leitura:
GUEVARA, E.C. Textos
Políticos e Sociais. São Paulo: Ed. Populares, 1987.
HEGEL, G.W.F. A
fenomenologia do espírito. Vol. 1. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
MARX, K. Questão Judaica,
in Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Lisboa: Ed. 70, 1993.
MAZZILLI, S. A idéia de
universidade no Brasil(…). Universidade e Sociedade, ano XX, n. 47 de maio de
2011, pp. 110- 120. DF: ANDES-SN,2011.
SENUP. Cartilha
preparatória. I Seminário Nacional de Universidade Popular, 2011.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço
Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O
dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002).
Colabora para o Blog da Boitempo
mensalmente, às quartas.
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