“O que houve em Pinheirinho foi um estupro social”
“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”
Com o entusiasmo de uma menina, Conceição de Oliveira protestava sem
parar sob o sol escaldante: “o povo unido jamais será vencido”. O grito
da mulher de 53 anos vinda de Minas Gerais na infância para São Paulo
em busca de uma vida melhor juntava-se à multidão de quase 6 mil pessoas
que percorreu as ruas centrais de São José dos Campos, no interior de
São Paulo, dia 2 de fevereiro, durante a passeata nacional em apoio aos
moradores de Pinheirinho. Conceição lembra com terror da madrugada de 22
de janeiro, quando os tratores derrubaram a casa construída com
sacrifício pela catadora de lixo. Temeu pela queda das paredes atingirem
o próprio corpo. Mas não é a perda do patrimônio material que a leva às
lágrimas. Ela se comove ao falar do vizinho cujo desaparecimento segue
sem solução. Desde o dia da invasão da polícia não teve notícias do
aposentado, que não foi encontrado em nenhum dos cinco abrigos. A
solidariedade que sobra a Conceição torna as ações da polícia, da
justiça e dos governos Geraldo Alckmin e Eduardo Cury (ambos do PSDB)
ainda mais covardes: escancara a discrepância entre “o ato de se
preocupar com o outro” e a postura de quem é incapaz de se sensibilizar
com o próximo e perdeu as noções de humanidade em nome de interesses
econômicos.
As 1,7 mil famílias (cerca de 9 mil pessoas) foram expulsas de suas
casas de forma brutal e truculenta.
Depois de oito anos na comunidade,
não tiveram tempo de nada. Tentaram resistir com tambores de plástico e
bastões de madeira. Mas foi uma disputa desleal. Com helicópteros,
cavalaria, tropa de choque, gás lacrimogêneo e armas de borracha e de
fogo, policiais espalharam medo e tensão. Em defesa do poder econômico, a
ação defendeu a propriedade privada do megaespeculador Naji Nahas, dono
do terreno. Condenado por lavagem de dinheiro e corrupção, ele é
acusado pela quebra da Bolsa de Valores no Rio de Janeiro, em 1989,
entre outros golpes milionários. Chegou a ser preso em 2008 junto com o
banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta. Mas a
Justiça preferiu agir contra as famílias de Pinheirinho. A juíza da 6ª
Vara Cível de São José dos Campos, Márcia Mathey Loureiro, proferiu a
sentença de reintegração de posse, contrariando a liminar da Justiça
Federal que suspendia a invasão policial. Junto com o evidente interesse
econômico naquela área, as decisões que culminaram na chacina lembram o
que ocorreu na Alemanha, com o Terceiro Reich. Propunha-se uma “faxina
social” cujo único objetivo era a extinção dos pobres.
_ O que houve em Pinheirinho foi um estupro social _ define o coordenador geral do movimento, Valdir Martins, o Marron.
A marcha nacional buscou sensibilizar o governo federal para
desapropriar o terreno e garantir o direito de moradia às famílias. Nas
faixas levadas pelos manifestantes, palavras de ordem expressavam o
desejo: “Dilma: não basta se solidarizar, é preciso desapropriar.” A
passeata durou cerca de três horas. A concentração iniciou por volta das
9h, na Praça Afonso Pena, e seguiu até a prefeitura municipal. O grande
número de mulheres carregando crianças no colo, algumas recém-nascidas,
chamou à atenção e derrubou a ideia veiculada por muitos jornais, que
trataram os moradores como “criminosos” e “bandidos”.
_ Quando entramos no Pinheirinho era tudo matagal. Agora nossa casa
“tava” pronta. Não sobrou nada. Mataram até os gatos. Foi terrível. Não
consegui nem tirar o leite da pequena _ diz Moacir de Paiva Rosa, 62
anos, que fez todo o percurso da passeata com a filha de cinco anos no
colo.
Acompanhado da mulher e dos dois filhos, o mais novo com um mês e 15
dias nos braços, o caminhoneiro Reginaldo Santos Miguel, 34 anos,
relembrava o massacre aos direitos humanos:
_ Saímos de lá à base de bala. Fomos tratados como bichos. Não acredito em mais nada. Só em Deus.
Militantes, estudantes, movimentos sociais, lideranças da esquerda de
todo o país juntaram forças em solidariedade às famílias. O Sindicato
dos Bancários de Blumenau e Região organizou um ônibus com 39 pessoas do
Vale do Itajaí, Florianópolis e Curitiba. Levaram mantimentos e
solidariedade. Em comum, um objetivo: denunciar para o mundo como os
pobres são tratados no país. Afinal, o que ocorreu em Pinheirinho não
foi um ato isolado apenas contra aquelas famílias, mas uma afronta a
todos os trabalhadores e aqueles que não compactuam com injustiças
sociais. Em São José dos Campos, os relatos e depoimentos de moradores
despejados reforçam a indignação e revolta:
_ Quando a polícia chegou, sitiou todo o local e começou a tortura.
Aquele que não sofreu tortura física foi vítima de tortura psicológica. O
massacre foi total. Uma covardia _ lembra o morador Sérgio Henrique
Pires.
_ Doeu muito voltar lá e ver tudo o que você construiu abaixo. Foi de
cortar o coração _ relata o baiano, de Salvador, Arnaldo Goes Santana,
de 63 anos, há seis anos no Pinheirinho.
_ Meu barraco era pequeno, mas era meu. Meu pai não me deu estudo,
nem meu nome eu sei escrever direito. Meu único sonho realizado era ter
meu lugar. Meu sonho não é vir pra cidade grande. Quero um lugar pra
plantar, como tinha minha horta em Pinheirinho_ conta Conceição.
Mãe de 14 filhos, Conceição morava sozinha no Pinheirinho. O cachorro
Julin lhe fazia companhia. Não pôde levá-lo ao abrigo no Bairro
Morumbi, onde resiste ao calor e à falta de espaço com cerca de 350
pessoas. Faltam janelas. Os ventilados não dão conta de refrescar o
ambiente. Os colchões estão amontoados no chão do ginásio de esportes.
Não há espaço para todas as famílias no ginásio. Algumas delas estão
numa cancha de bocha, ao lado.
_ Falta água. Falta tudo. As pessoas estão amontoadas. Os abrigos mais parecem campos de concentração_ defende Marron.
_ Aqui não é lugar para morar, para criar um filho. Mesmo sendo
pobre, vou dar o melhor para meu filho. Quero voltar para o que é meu _
emociona-se Fabiana da Silveira Nemeth, 30 anos, mãe de Rafael, de três.
A área de 1,3 milhão de m² onde viviam as famílias lembra um cenário
de guerra. O retrato é de destruição total. Localizado em uma região
nobre de São José dos Campos, o terreno funcionava como bairro, com
casas de alvenaria, pontos de comércio, até área de lazer para as
crianças. Só restaram escombros. Pedaços de eletrodomésticos, ursos de
pelúcia, brinquedos, panelas e móveis inteiros destruídos provam que os
moradores não tiveram tempo de recolher nada. Saíram com a roupa do
corpo. Precisam ter devolvida a dignidade que lhes foi arrancada.
A indignação não basta. Solidarizar-se com os moradores não é
suficiente. Há outros “Pinheirinhos”, alvos da especulação imobiliária,
da perversidade de um sistema político que coloca os lucros acima da
vida humana, espalhados pelo Brasil. Que as vozes indignadas com o que
houve em Pinheirinho não silenciem com o passar do tempo. Que o grito de
Dona Conceição, a moradora de Pinheirinho que não se cansava de bradar:
“o povo unido jamais será vencido” sirva para despertar outras vozes e
ações de resistência e coletividade.
Texto e fotos: Magali Moser
Jornalista
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