Luiz Ricardo Leitão
A vida é muito dinâmica e, a cada dia, nos propicia pródigas lições sobre a
desfaçatez humana. Este cronista, por exemplo, já se preparava para escrever
sobre o último carnaval, em que, mais uma vez, as contradições suscitadas
pela dimensão 'espetacular' da festa em oposição à sua iniludível origem
popular suscitaram um intenso debate entre os foliões cariocas, baianos e de
outras províncias da nossa Bruzundanga. De súbito, vi as páginas de opinião
da grande imprensa nacional e estrangeira invadidas por severos editoriais
de condenação ao governo cubano pela morte do autoproclamado "preso
político" Orlando Zapata Tamayo, após um longo período em greve de fome. Ato
contínuo, voltou a circular pela rede virtual artigos e textos hostis ou
simpáticos ao regime de Fidel, Raúl & Cia., repletos, como sempre, de
prognósticos e palpites sobre o futuro da ilha.*
*Esse enredo não é novo, pensei cá com meus botões. Em outubro de 1991, já
no Período Especial, Noam Chomsky aventava algumas hipóteses sobre o destino
insular. Declarava o pensador que os EUA não invadiriam Cuba enquanto
temessem uma forte resistência armada no país. A tática de Washington seria,
pois, apostar no estrangulamento econômico, a fim de que a situação interna
piorasse, de tal forma que os protestos se multiplicassem e, em decorrência
disso, as medidas repressivas se tornassem inevitáveis. Os desdobramentos
eram previsíveis: devido aos efeitos cada vez mais nefastos do bloqueio, as
ações do aparato de repressão viriam a ser cada vez mais rigorosas e, com
isso, terminaria por instituir-se "o ciclo natural de mais repressão, mais
dissidentes e talvez violência".*
*Essa era a senha para o retorno dos marines à terra de Martí. A imprensa
ianque já poderia até escrever os editoriais sobre a iminente ação imperial
no arquipélago vizinho: "Libertamos Cuba", "Todo o hemisfério é democrático"
e outras balelas do gênero, prognosticava Chomsky, convencido, porém, de que
o plano mais racional -- em certa medida aplicado -- consistiria em esperar
que tudo desmoronasse na pérola do Caribe. A manutenção do bloqueio, o corte
dos créditos, a quarentena cultural e as medidas "cirúrgicas" para impedir a
ruptura do isolamento resultariam em mais sofrimento para a ilha e, por
extensão, mais dissidência, protestos e rebeliões.*
*Passaram-se quase vinte anos - e até os oráculos falharam. Os cubanos
conhecem muito bem seus problemas internos, ao contrário do que supõem os
inimigos, mas preservam, como raros povos no mundo, o sagrado direito da
autodeterminação. E, politizados e instruídos, têm acompanhado com muita
atenção as didáticas lições que o mundo pós-moderno lhes enseja. Eles hoje
podem avaliar com precisão o que foi a opção da ex-URSS pela vistosa
"economia de mercado", que deixou a Rússia entregue ao poder das máfias e
monopólios. Eles veem ao seu lado o Haiti devastado pela eterna servidão
colonial, tutelado de forma grotesca pelas forças da ONU, padecendo a mais
grave tragédia social do Ocidente. E sabem que a aparente "paz e
prosperidade" do modelo neoliberal na América Latina não passa de um
espelhinho dourado para encantar os analfabetos políticos.*
*Agora mesmo, após o brutal terremoto que sacudiu o Chile, já estão eles a
receber notícias sobre os eventos na pátria de Allende e Neruda, dando-nos
conta de que, no dia seguinte ao abalo, havia um cenário de caos social, com
saques a supermercados em várias cidades, que obrigaram a presidente
Bachelet a pôr o Exército nas ruas para conter a onda de roubos. Em Cuba,
quando um furacão açoita o território, além de não se perderem milhares de
vidas (como ocorre no vizinho Haiti), nunca se registram as cenas de
barbárie a que se assiste na América do Sul. Estado e sociedade civil são
aliados na luta de reconstrução do país, tarefa que é bastante facilitada
pelo alto grau de organização social da população.*
*Por isso, não estranho que as vozes mais contundentes contra Cuba emanem da
Espanha e dos EUA, ou dos bolsões mais reacionários de Bruzundanga. A altiva
ex-colônia incomoda muito suas ex-metrópoles, que, em termos de democracia,
quase nada têm a ensinar. Em meio à crise que grassa na periferia (e núcleo)
da União Europeia, o governo de Madri arvora-se em grande defensor da
democracia e exige a "libertação" dos presos políticos cubanos,
esquecendo-se das centenas de separatistas bascos encarcerados em suas
prisões. E a tchurma de Obama, que até hoje não cumpriu a promessa de
desativar Guantánamo, reitera com o cinismo usual a "apelação humanitária"
dos espanhóis. Mais irônico que isso, só mesmo o voto de pesar que o
hipopótamo Heráclito Fortes (DEM-PI) expressou no Senado pela morte de
Zapata. Pelo visto, nem a prisão de Arruda abalou tanto os nossos
"democratas"...*
*Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em
Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros:
reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no "Período
Especial".***
Criada em Goiás associação de solidariedade a Cuba
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