quarta-feira, 17 de março de 2010

Reflexões sobre Cuba

Luiz Ricardo Leitão

A vida é muito dinâmica e, a cada dia, nos propicia pródigas lições sobre a


desfaçatez humana. Este cronista, por exemplo, já se preparava para escrever

sobre o último carnaval, em que, mais uma vez, as contradições suscitadas

pela dimensão 'espetacular' da festa em oposição à sua iniludível origem

popular suscitaram um intenso debate entre os foliões cariocas, baianos e de

outras províncias da nossa Bruzundanga. De súbito, vi as páginas de opinião

da grande imprensa nacional e estrangeira invadidas por severos editoriais

de condenação ao governo cubano pela morte do autoproclamado "preso

político" Orlando Zapata Tamayo, após um longo período em greve de fome. Ato

contínuo, voltou a circular pela rede virtual artigos e textos hostis ou

simpáticos ao regime de Fidel, Raúl & Cia., repletos, como sempre, de

prognósticos e palpites sobre o futuro da ilha.*



*Esse enredo não é novo, pensei cá com meus botões. Em outubro de 1991, já

no Período Especial, Noam Chomsky aventava algumas hipóteses sobre o destino

insular. Declarava o pensador que os EUA não invadiriam Cuba enquanto

temessem uma forte resistência armada no país. A tática de Washington seria,

pois, apostar no estrangulamento econômico, a fim de que a situação interna

piorasse, de tal forma que os protestos se multiplicassem e, em decorrência

disso, as medidas repressivas se tornassem inevitáveis. Os desdobramentos

eram previsíveis: devido aos efeitos cada vez mais nefastos do bloqueio, as

ações do aparato de repressão viriam a ser cada vez mais rigorosas e, com

isso, terminaria por instituir-se "o ciclo natural de mais repressão, mais

dissidentes e talvez violência".*



*Essa era a senha para o retorno dos marines à terra de Martí. A imprensa

ianque já poderia até escrever os editoriais sobre a iminente ação imperial

no arquipélago vizinho: "Libertamos Cuba", "Todo o hemisfério é democrático"

e outras balelas do gênero, prognosticava Chomsky, convencido, porém, de que

o plano mais racional -- em certa medida aplicado -- consistiria em esperar

que tudo desmoronasse na pérola do Caribe. A manutenção do bloqueio, o corte

dos créditos, a quarentena cultural e as medidas "cirúrgicas" para impedir a

ruptura do isolamento resultariam em mais sofrimento para a ilha e, por

extensão, mais dissidência, protestos e rebeliões.*



*Passaram-se quase vinte anos - e até os oráculos falharam. Os cubanos

conhecem muito bem seus problemas internos, ao contrário do que supõem os

inimigos, mas preservam, como raros povos no mundo, o sagrado direito da

autodeterminação. E, politizados e instruídos, têm acompanhado com muita

atenção as didáticas lições que o mundo pós-moderno lhes enseja. Eles hoje

podem avaliar com precisão o que foi a opção da ex-URSS pela vistosa

"economia de mercado", que deixou a Rússia entregue ao poder das máfias e

monopólios. Eles veem ao seu lado o Haiti devastado pela eterna servidão

colonial, tutelado de forma grotesca pelas forças da ONU, padecendo a mais

grave tragédia social do Ocidente. E sabem que a aparente "paz e

prosperidade" do modelo neoliberal na América Latina não passa de um

espelhinho dourado para encantar os analfabetos políticos.*



*Agora mesmo, após o brutal terremoto que sacudiu o Chile, já estão eles a

receber notícias sobre os eventos na pátria de Allende e Neruda, dando-nos

conta de que, no dia seguinte ao abalo, havia um cenário de caos social, com

saques a supermercados em várias cidades, que obrigaram a presidente

Bachelet a pôr o Exército nas ruas para conter a onda de roubos. Em Cuba,

quando um furacão açoita o território, além de não se perderem milhares de

vidas (como ocorre no vizinho Haiti), nunca se registram as cenas de

barbárie a que se assiste na América do Sul. Estado e sociedade civil são

aliados na luta de reconstrução do país, tarefa que é bastante facilitada

pelo alto grau de organização social da população.*



*Por isso, não estranho que as vozes mais contundentes contra Cuba emanem da

Espanha e dos EUA, ou dos bolsões mais reacionários de Bruzundanga. A altiva

ex-colônia incomoda muito suas ex-metrópoles, que, em termos de democracia,

quase nada têm a ensinar. Em meio à crise que grassa na periferia (e núcleo)

da União Europeia, o governo de Madri arvora-se em grande defensor da

democracia e exige a "libertação" dos presos políticos cubanos,

esquecendo-se das centenas de separatistas bascos encarcerados em suas

prisões. E a tchurma de Obama, que até hoje não cumpriu a promessa de

desativar Guantánamo, reitera com o cinismo usual a "apelação humanitária"

dos espanhóis. Mais irônico que isso, só mesmo o voto de pesar que o

hipopótamo Heráclito Fortes (DEM-PI) expressou no Senado pela morte de

Zapata. Pelo visto, nem a prisão de Arruda abalou tanto os nossos

"democratas"...*



*Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em

Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros:

reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no "Período

Especial".***

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