quinta-feira, 12 de julho de 2012

Bolívia: O cenário do golpe de Estado e a vitória camponesa e popular




Um motim policial, ativado por reivindicações salariais, deu início a um cenário de golpe de Estado que, sem dúvida, foi desmontado e derrotado pela articulação exitosa de uma condução presidencial que não caiu na armadilha da provocação e a vigorosa e crescente mobilização social, principalmente dos camponeses, para defender a revolução.

Uma ampla mobilização social em defesa da democracia e do processo de mudança, somada à inteligente posição governamental de não cair na armadilha da provocação, foram os componentes chave da estratégia político-militar com a qual se desmontou um cenário de golpe de Estado contra o presidente Evo Morales.

Era só questão de horas o trânsito do cenário de golpe de Estado à interrupção da ordem constitucional propriamente dita. Ou seja, o cenário de golpe de Estado, entendido como a configuração e articulação de atores, desenvolvimento de métodos conspirativos e violentos, metas comuns, a aparição de uma liderança e apoio social, não alcançou um nível de maturidade suficiente para sua materialização.

Somente uma obtusa posição contra o governo ou uma cumplicidade com o que se estava gestando, além de uma ignorância sobre os temas militares, poderiam conduzir a negação de que se estava construindo um cenário para um golpe de Estado “suave”, o segundo que Morales enfrenta desde que assumiu a condução do país.

O desenvolvimento do “golpe suave”, uma nova modalidade de desestabilização fabricada nos laboratórios da Central de Inteligência Americana (CIA) que já foi experimentada no leste da Europa e na Venezuela, se foi incubando nos setores radicalizados da ultra direita boliviana que vêem com temor o massivo apoio social com o qual conta Morales há mais de seis anos do exercício de seu mandato (quatro como presidente do Estado "mono civilizatório" e dois como presidente do Estado plurinacional).

Esta recriação do golpe como método para interromper processos de ampla participação popular, concebidos por intelectuais como o politólogo estadunidense Gene Sharp, passa por várias fases, desenvolvidas inclusive simultaneamente, que vão desde o abrandamento, deslegitimação, movimentações nas ruas, até a fratura institucional. A estratégia golpista foi executada com êxito na derrubada do presidente georgiano Eduard Chevarnadze, em novembro de 2003, e a ascensão ao poder de Viktor Yuschenko na Ucrânia, em dezembro de 2004.

Desde que a América Latina e o Caribe se converteram em cenário de disputa entre a emancipação e a dominação, a estratégia do “golpe suave” se registrou através de cinco modalidades. Triunfou em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), mas fracassou na Venezuela (2002), Bolívia (2008 e 2012) e no Equador (2010).

Mudança de estratégias para o derrocamento

Se concebemos que a estratégia não é algo imutável no tempo, o golpe “suave”, como aposta fundamental da direita boliviana, experimentou por sua vez uma mudança de matizes nestes seis anos. Passou da estratégia da derrocada de Evo Morales através de métodos violentos (2006-2009) à estratégia de desgaste prolongado para a derrota do primeiro presidente indígena da América Latina e Caribe (janeiro de 2010 em diante).

Porém, a diferença entre uma e outra estratégia é o cenário de sua realização. A primeira se ativou com a participação de grupos paramilitares nos departamentos da chamada “Meia Lua” e a segunda se está desenvolvendo principalmente no ocidente. Não há dúvida, a aposta é quebrar onde mais forte for o processo de mudança e a liderança de Morales.

Com ambas estratégias de “golpe suave” se apegaram e seguramente seguirão buscando o objetivo fundamental de provocar a renúncia do presidente Evo Morales e alcançar a“reversão” da revolução mais profunda que vive este pequeno país localizado no coração da América do Sul e obviamente a convocatória de eleições antecipadas.

O “golpe suave” em sua segunda modalidade

Quando Evo Morales foi eleito com 64% dos votos em dezembro de 2009 –as primeiras eleições sob a nova Constituição Política do Estado-, era previsível que a direita ia  mudar de métodos táticos e de cenários na materialização de sua estratégia contrarrevolucionária e subversiva.

Os métodos táticos baseados na apropriação do discurso de mudança buscaram, desde janeiro de 2010, montar-se sobre conflitos sociais protagonizados por organizações e movimentos sociais com expectativas sobre dimensionadas e em um momento de retorno aos particularismos. O eixo central da conspiração foi e será o surgimento e crescimento do conflito social e a geração de uma “sensação térmica” de ingovernabilidade, de tal maneira que meta o país em um beco sem outra saída que a de por sobre a mesa o questionamento da continuidade do processo de mudança. A conflitividade social é apresentada como um divórcio entre o governo e os setores sociais indígenas, de trabalhadores rurais e populares, quando a rigor o que se está vivendo é uma relação de correspondência não harmoniosa que em nenhum caso implica uma ruptura.

Não é que cada conflito social seja o resultado de uma capacidade organizativa da direita, pois isso seria dar-lhe mais força do que realmente tem, mas também seria ingênuo ignorar que não há mobilização social na que a oposição não queira montar – com recursos, infiltrados ou outras formas - para levar água ao seu moinho.

Nesse contexto é que, após fracassar a intenção da direita de envolver as forças armadas em seus planos desestabilizadores (2006-2009), a polícia se converteu para a embaixada dos Estados Unidos em outro de seus atores principais para a construção permanente da subversão. O esforço não é muito, já que esta força do aparato estatal – ainda não transformada radicalmente apesar do Pátria ou Morte com o que fecham seus principais atos-, tem há anos uma relação carnal com a ligação estadunidense e seus serviços secretos de inteligência, como a CIA e o FBI.

Em fevereiro passado, o alto comando policial de então descobriu uma operação clandestina da embaixada dos Estados Unidos para o traslado de armas, munições e equipamentos de telecomunicações do departamento de Beni para o departamento de Santa Cruz. Dois oficiais bolivianos – dos quais um é o chefe de segurança da embaixada estadunidense -, foram detidos em plena execução da operação.

A embaixada não ia ficar com os braços cruzados e aproveitou uma oportunidade para cortar a cabeça do general Jorge Santiesteban, que além disso foi um ator chave para desmontar em abril de 2009 os planos desestabilizadores e de magnicídio de um grupo paramilitar integrado por estrangeiros à iniciativa da ultra direita. Uma denúncia sobre o ingresso irregular de 54 jovens na Academia Nacional da Polícia, cuja origem todavia não está clara, foi o instrumento funcional do desenvolvimento crescente da conspiração desde a polícia. A nomeação do coronel Maldonado como substituto não freou o plano, senão que incorporou outro fator de mal estar nas filas policiais: não adveio da academia.
Então, apoiados em uma reivindicação, bastante compreensível pelas condições de trabalho e salariais dos policiais de base, se ativou um amotinamento que se iniciou e que passou aceleradamente da mobilização por demandas justas à construção de um cenário de golpe de Estado, entendido este conceito como o impulso de medidas ativas, próprias e distantes, para gerar uma crise política, aparente ou real, na perspectiva de sua articulação para interromper a ordem constitucional.

O cenário de golpe se caracterizou por: tomada violenta da sede da polícia (para reeditar simbolicamente os feitos de fevereiro de 2003), o uso de capuzes e a exibição de armas, a queima de documentação, a participação de ex-policiais e o alto grau de alguns, a designação não institucional da ex-esposa de um policial como procuradora da polícia, o ingresso de armas de grosso calibre nas unidades de La Paz, Cochabamba e Tarija, as arengas políticas contra o presidente Evo Morales, a busca de outros aliados contrários ao governo e os atentados com dinamite contra a Assembleia Legislativa Plurinacional, o Palácio de Governo e a Rádio Pátria Nova.

As aspirações golpistas se nutriam da esperança de que, com o tempo, convergiriam outros três elementos: que a marcha indígena chegasse antes do prazo previsto, que o governo tirasse os militares dos quartéis e que outros sindicatos radicalizados se somassem ao protesto. O objetivo, gerar uma “sensação térmica de ingovernabilidade” e provocar a morte de alguns civis, policiais e militares para convulsionar o país e dar a largada final.

O cenário de golpe se desativou, pelo contrário, pelas seguintes razões: a maioria dos indígenas da marcha aprovou a linha de atrasar sua concentração na sede do governo por 24 horas, e o presidente Evo Morales ordenou às forças armadas não sair por nenhum motivo; os militares da reserva não conseguiram agitar os militares ativos, os professores e trabalhadores da saúde não acataram a convocatória de seus dirigentes e a ausência de liderança foi notável.

Mas se há algo que contribuiu para desativar o cenário de golpe de Estado foi a combinação de dois fatores: primeiro, a resistência do governo de não cair na provocação e a crescente mobilização social em vários departamentos do país e particularmente na cidade sede do governo. Os trabalhadores rurais e urbanos abandonaram seus interesses particulares e protagonizaram uma poderosa mobilização social em ascenso. Como as vitórias conquistadas desde 2006, a derrota dos afãs golpistas só foi possível pela combinação do poder do Estado e do poder do povo nas ruas.

O uso dos meios de comunicação

Esta nova modalidade golpista teria poucas possibilidades de êxito sem o suporte, direto ou não, dos meios de comunicação privados que se encarregam de reproduzir e amplificar em detalhes os gritos da oposição e de calar as medidas e os reclames do oficialismo.

As experiências da Ucrânia, Geórgia, Venezuela, Equador e da Bolívia, que experimentaram a força do “golpe suave”, confirma o uso que os condutores da desestabilização fazem de climas construídos por certos critérios informativos, por muito inocentes que pareçam uma parte deles. Também, coincidência ou não, esta sorte de coordenação midiática se produz a partir do momento em que Morales assumiu a condução do país, seja para dar conta de uma posição frente à nacionalização do petróleo e a Assembleia Constituinte, para por em evidência o Observatório dos Meios da Fundação UNIR, ou em torno das consultas pelos estatutos autônomos, a eleição do Prefeito de Chuquisaca e o referendo revogatório de mandato. Todos no período 2006-2009.

A partir de janeiro de 2010, a ofensiva midiática se ampliou e tem mudado de orientação. Passou de legitimar a violência paramilitar para construir ao menos as seguintes matrizes de opinião: Evo, inimigo dos indígenas; Evo, desenvolvimentista e inimigo da Mãe Terra; Evo, permissivo com o narcotráfico; Evo, autoritário (violador dos direitos humanos e da livre expressão) e Evo aliado de países que alentam o terrorismo.

Chama a atenção que importantes meios de comunicação tenham contribuído –premeditadamente ou não- com o cenário de golpe de Estado ao dar ênfase às precárias condições dos policiais (que nunca foram negadas pelo governo) antes de alertar sobre os métodos e as formas violentas em que se dava o motim policial.

Uma revisão dos editoriais, dos títulos e das fontes consultadas permite apreciar, sem muito esforço, elementos comuns em vários meios de comunicação privados sobre sua posição frente ao governo, e que foi utilizado pela oposição em todos os seus âmbitos.

As etapas do “golpe suave”

De acordo com o politólogo estadunidense Gene Sharp, a estratégia do “golpe suave” pode ser desenvolvido por etapas hierarquizadas ou simultaneamente. No caso boliviano, mais ou menos se deu da seguinte maneira.

1ª etapa: abrandamento (empregando a guerra de IV geração):
• Desenvolvimento de matrizes de opinião centradas em déficits reais ou potenciais.
• Montagem nos conflitos e promoção do descontentamento.
• Promoção de fatores de mal estar, entre os que se destacam: desabastecimento, criminalidade, manipulação do dólar, greve patronal e outros.
• Denúncias de corrupção, promoção de intrigas sectárias e fratura da unidade.

2ª etapa: deslegitimação :
• Manipulação do anticomunismo.
• Impulsionamento de campanhas publicitárias em defesa da liberdade de imprensa, direitos humanos e liberdades públicas.
• Acusações de totalitarismo e pensamento único.
• Fratura ético-política.

3ª etapa: aquecimento das ruas:
• Montagem nos conflitos e fomento da mobilização nas ruas.
• Elaboração de uma plataforma de luta que globalize as demandas políticas e sociais.
• Geração de todo tipo de protestos, expondo falhas e erros governamentais.
• Organização de manifestações, fechamento e tomada de instituições públicas que radicalizam a confrontação.

4ª etapa: combinação de diversas formas de luta:
• Organização de marchas e tomada de instituições emblemáticas, com o objeto de cooptá-las e convertê-las em plataforma publicitária.
• Desenvolvimento de operações de guerra psicológica e ações armadas para justificar medidas repressivas e criar um clima de ingovernabilidade.
• Impulsionamento de campanha de rumores entre forças militares e tratar de desmoralizar os organismos de segurança

5ª etapa: fratura institucional:
Sobre a base das ações de rua, tomada de instituições e pronunciamentos militares,  obrigando a renúncia do presidente.


Em caso de fracasso, se mantém a pressão de rua e se migra para a resistência armada.

Preparação do terreno para uma intervenção militar do império ou o desenvolvimento de uma guerra civil prolongada. Promoção do isolamento internacional e o cerco econômico.

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