sábado, 13 de fevereiro de 2010

Morre outra língua

Por Pedro Pablo Rodríguez (*)

Hanvana, (Prensa Latina)


Ao falecer aos 85 anos de idade, Boa Sr foi a última pessoa capaz de falar a língua indígena bo nas ilhas de Andamán, situadas no golfo de Bengala, no Oceano Índico.

Em declarações à imprensa, a professora da Universidade Jawaharlal Nehru de Nova Delhi, Anvita Abbi, disse que Boa era, depois da morte de seus pais há 30 ou 40 anos, a última pessoa que podia falar essa língua, razão pela qual teve que aprender uma versão do hindi utilizado nas ilhas para poder se comunicar.

A prestigiosa lingüista afirma que se estima que os dialetos falados em Andamán possam ser os últimos representantes das línguas empregadas em tempos pre-neolíticos.

Este é o segundo dos dialetos dessas ilhas que tem morrido nos últimos três meses.

Terminam aí as perdas?

Parece que não, pois os quatro grandes grupos em que se classificam aos andamaneses mal são umas centenas ou dezenas de pessoas.

Os integrantes do grupo dos grande andamaneses são por volta de 50, a maioria meninos, e vivem na ilha Strait, perto da capital das ilhas Port Blair.

A senhora Boa fazia parte desta comunidade, com várias subtribos, onde se falam ao menos quatro línguas, uma delas é o extinto bo.

Os jarawa contam com ao redor de 250 membros, e vivem na selva, no centro de Andamán.

Estima-se que a comunidade dos onge não tem mais que algumas centenas.

Nunca se estabeleceu contato humano com o quarto grupo, o dos sentineleses, ainda que se suspeita também que seu número seja exiguo.

Os três primeiros estão em sério perigo de extinção por doenças adquiridas mediante o contato com o continente e por efeitos do alcoolismo. E questiona-se se necessariamente teve que desaparecer a língua bo, quando há tantos anos já se via uma redução dramática de seus falantes.

Como se chegou à situação de que ficasse uma só pessoa que a empregava?

De fato, pois, estava já morta faz tempo, desde que a senhora Boa Sr não pôde se comunicar com outra pessoa nessa língua e teve que recorrer ao hindi.

Obviamente, não houve interesse em salvar essa língua.

Mas o agravante é que não são só línguas senão pessoas que formam comunidades com culturas próprias que estão desaparecendo, fenômeno que nem sequer é específico das Ilhas Andamán.

O genocídio de que tanto se falou com respeito aos povos originarios da América não ficou limitado ao século XVI, nem sequer as geófagas campanhas protagonizadas pelas repúblicas criollas desde as independências, que arrebataram, por exemplo, a Pampa e a Araucária de seus habitantes ancestrais, ou que confinaram cada vez mais, nos días atuais, os habitantes autóctonos da Amazônia.

O desaparecimento de línguas e de culturas é um escandaloso desastre para a humanidade que, como vemos, segue ocorrendo em pleno século XXI e que parece, tristemente, não ter fim.

No entanto, não é tema corrente nos meios de difusão, muito menos de um amplo programa internacional para salvar essas línguas que acabarão em curto prazo, enquanto morrem seus cada vez menos falantes.

De muitas dessas línguas nem sequer dispomos de estudos lingüísticos e gramaticais, ou de gravações para conhecer suas tonalidades.

Parece que por serem tão poucos seus portadores, como sucede com os grupos das Ilhas Andamán, o resto da humanidade já as condenasse à irremediável extinção.

E mal há consciência de que tais perdas nos afetam a todos: é um pedacinho da humanidade que se evapora sem deixar impressões ou, quando existem, são tão débeis que se torna extremamente difícil reproduzi-las.

A cada língua que se nos vai é uma forma de cultura, de pensamento, que deixa de existir.

Saberes variados sempre úteis; expressões espirituais que poderíamos desfrutar de outras línguas e culturas; formas de existência, hábitos e costumes que deixam de existir: todo isso, e bem mais, implica o desaparecimento de uma língua.

No fundo dessa ignorância, desse deixar passar despreocupadamente, subjaz um critério racista e hegemonista, ainda que às vezes não tenha consciência disso ou não se queira admitir.

Essas comunidades cujas línguas se perdem, com freqüência junto com as mesmas pessoas que as integram, não só costumam estar formadas por relativamente poucos membros, senão que também, com freqüência, estão à margem dos circuitos globalizados do capitalismo contemporâneo.

Para alguns são sociedades tão "atrasadas", tão fora das formas civilizatórias atuais, tão marginais, que seu melhor destino é justamente desaparecer, quando menos em suas atuais formas de existência para incorporar ao mundo moderno, e assim deixarem de ser culturas originais e autóctonas, das quais suas línguas são manifestação decisiva.

E se essas comunidades, para sua desgraça, estão assentadas em lugares de significação estratégica para as políticas imperiais ou cujos territórios possuem recursos naturais valiosos, então serão diretamente agredidas, até mesmo com armas.

Basta o exemplo da colza, esse mineral tão importante nas tecnologias contemporâneas, cuja extração no Congo se impõe pelas companhias ocidentais a um ritmo disparado, responsável pelo exterminio de comunidades completas e suas culturas.

É imprescindível saber quantas e quais culturas, e suas línguas, se acham em vias de desaparecimento; é imprescindível organizar e executar ações para preservá-las.

Tudo isso corresponde aos governos nacionais, às sociedades onde se encontram e à comunidade internacional em suas diversas maneiras de se organizar e de atuar de conjunto.

Cada língua que se salva, que se continue falando, que se comece a escrever, é uma vitória da espécie em sua afã de sobrevivência.

(*) O autor é historiador, pesquisador, Prêmio Nacional de Ciências Sociais 2009 e colaborador da Prensa Latina.

rr/ppr/cc

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