Por Jorge Luis Ubertalli (*)
Buenos Aires, (Prensa Latina)
A remoção do ex-Presidente do Banco Central, Martín Redrado, pela presidenta Cristina Fernández de Kirchner ficou vetada por uma juíza vinculada diretamente com serviços de inteligência da ditadura militar, quem o restabeleceu no cargo.
O assunto põe em evidência não só uma operação política de desgaste governamental pela oposição de direita- e seus inconsistentes aliados progressistas- senão a mesmíssima existência da independência do Banco Central, administrador do papel-moeda, simples transfiguração monetária de mercadorias que só podem ser produzidas mediante o trabalho humano.
O fetichismo da virtualidade monetária, hoje como ontem, traduzida na Carta Orgânica do Banco que proclama a autarquia do ente, desata uma nova crise política no país.
Reflexo do papel verde
A oposição de Redrado ao cancelamento da dívida externa de mais de seis bilhões de dólares com uma parte das divisas nacionais, calculadas em 48 bilhões, deu lugar a uma crise de proporções ainda não resolvida.
Apoiado por todo o espectro opositor de direita, ao que se somam setores de centro-esquerda, Redrado se entrincheirou no Banco Central e dali resiste sua destituição.
Frente à atitude dos setores mas reacionários, que têm contribuído no crescimento da dívida externa contraída pela ditadura militar durante os anos de democracia formal e que agora simulam resistir seu pagamento (?), levantaram-se as vozes do oficialismo, entre elas a do deputado Carlos Heller.
Na edição de sábado do jornal Página 12, defendeu a conveniência de cancelar a dívida da forma como propôs o Poder Executivo.
Também sustentou, quanto à "independência" do Banco Central, que esta tinha sido auspiciada nos anos 90 pelo "Consenso de Washington" e executada pelo então ministro da Economia Domingo F. Cavallo, quem carrega sobre seus ombros vários julgamentos ainda não resolvidos por seu gerenciamento corrupto a frente do ministério.
No entanto, faz-se necessário esclarecer ainda porque a "independência" do Banco Central em relação ao Ministério da Economia e outros órgãos do Executivo está descolada dos princípios elementares da realidade econômica, tal qual a pinta a mesma economia política burguesa.
As divisas atuais do país, bem como as de muitas nações do globo, estão constituídas, em sua maioria, por dólares, desvalorizado papel verde e verdadeiro reflexo monetário em relação a sua suposta representação da riqueza mundial, produzida pelo trabalho humano.
Por outra parte, o dinheiro só é o equivalente projetado das mercadorias criadas pelos trabalhadores.
Constituindo-se na transfiguração ao sistema monetário da produção mercantil, o dinheiro deve sua existência à circulação de mercadorias, as quais podem ser trocadas graças ao papel-moeda circulante.
Mesmo que este exista como meio de pagamento, sempre o dinheiro e outros símbolos da virtualidade, aceitos socialmente como os fiéis aceitam a Deus- encontram-se subordinados à produção de riqueza social.
"As finanças não representam elementos mais ou menos técnicos que contemplam friamente o desenvolvimento dos acontecimentos sócio-econômicos, mas, pelo contrário, são instrumentos essencialmente dinâmicos que desempenham um importante papel nas tarefas políticas e econômicas", sustentou em seu artigo "As finanças como um método de desenvolvimento político" o economista cubano Luis Alvarez Rom. ("O Grande Debate sobre a economia em Cuba- 1963/64"- Ocean Press Editores, Melbourne, 1963, p. 155).
Portanto, nenhuma instituição oficial que entesoure, regule ou manipule dinheiro ou símbolos representativos da riqueza produzida por outros deveria arrogar-se a uma independência em relação ao organismo estatal que regula a produção e distribuição de bens/mercadorias: o Ministério de Economia.
Contribuições
Com base no pensamento anticapitalista, vários autores, incluindo o próprio Karl Marx, sustentaram a teoria aplicada a impossibilidade conceitual de outorgar às instituições que regulam atividades financeiras, como Bancos Centrais, a "independência" frente aos organismos do Estado encarregados de representar a atividade econômica, tanto produtiva como comercial.
Vladimir Ilich Lenin, em seu livro "O imperialismo, fase superior do capitalismo", argumentava como na etapa final deste sistema aparecia o capital financeiro, fusão do capital industrial com o bancário.
Em relação a isto, e em uma polêmica (1964) com o então presidente do Banco Nacional de Cuba, Marcelo Fernández Font, centrada no papel que deveria cumprir o Banco no desenvolvimento do socialismo na ilha, Ernesto "Che" Guevara sustentava: "Volta a propor-se o problema do ovo ou da galinha: Predomina um dos capitais (industrial ou bancário) nesta relação, qual? Têm exatamente a mesma força?". Citando Lenin, Che defendia que "a partilha do mundo pelos trustes internacionais", típica do imperialismo, fazia-se para obter matérias primas para suas indústrias.
"Isto é- acrescentava o Che- as necessidades objetivas da produção fazem surgir, no sistema capitalista desenvolvido, as funções dos capitais que engendram o imperialismo ou, o que é a mesma coisa, o capital industrial é o gerador do capital financeiro e o controla direta ou indiretamente. Pensar o contrário seria cair no fetichismo que ataca Marx com respeito à análise burguesa do sistema capitalista..." ( "O Grande Debate sobre a economia em Cuba 1963/1964" - Ernesto Che Guevara- Ocean Press editores, Melbourne, 2006, p. 292, 293).
Segundo Lenin, destacado por Che, "... o banco dos monopólios é seu próprio ministério de finanças, na dualidade de um Estado dentro de outro que se opera nesta etapa".
Isto, e não outra coisa, significa a "independência" dos bancos centrais dos Ministérios de Economia nos países capitalistas, independência por demais fictícia, porquanto se demonstrou nos Estados Unidos como o Federal Reserve, "independente" do Departamento do Tesouro, ambos a serviço dos monopólios, ajudou aos bancos quebrados com 750 bilhões de dólares, sacados dos bolsos dos contribuintes, em sua maioria criadores e realizadores de riqueza alheia.
Conclusões
Apesar de o governo de Cristina Fernández de Kirchner ter decidido utilizar fundos de reserva do Fundo do Bicentenário para cancelar uma dívida externa fraudulenta, contraída pela ditadura militar e elevada pelos governos democráticos formais que lhe sucederam, fundamentalmente o de Carlos Menem, também é verdadeiro que para deixar da pagar, tal como justamente reclamam setores de esquerda e centro-esquerda, requer-se uma correlação de forças favorável, representada por uma aliança da classe operária e classe média, hoje praticamente debilitada.
O governo deverá então aprofundar a redistribuição da receita, tirando dos mais ricos para distribuir aos mas pobres, a fim de ganhar ativamente às grandes massas para uma transformação radical do país.
No entanto, a administração atual joga às vezes para os dois lados de modo a manter o equilíbrio com setores de poder com os quais não se deve conciliar.
Modificar a Lei de Entidades Financeiras e a Carta Orgânica do Banco Central permitirá liquidar a especulação improdutiva virtual e criar a base econômico-financeira para o desenvolvimento planificado do país quanto à regulação de produção de bens/circulante; concessão de créditos, contabilidade e controle de despesas e divisas e outras.
E possibilita também terminar com o fetichismo das finanças quanto à sua suposta hegemonia sobre a geração de riquezas reais, meios de produção e bens de consumo, produzidas pelos trabalhadores, a quem terão de pertencer, cedo ou tarde.
(*) O autor é jornalista e escritor argentino, colaborador de Prensa Latina.
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